Este lugar já não existe. Talvez
dentro haja resíduos, talvez
alguém ache os restos do naufrágio.
E poderá decifrar o quê havia fora,
nau desfundada que continha
o variado alimento da asfíxia
em alta mar, os instrumentos que marcam
falsos rumos durante décadas de ondas
e salitre, seres submarinos
que acossam a bitácula.
Este lugar afunda-se como
a altura do mar nas tormentas de inverno, nau de bússola
louca, nau de diários molhados, de camarotes
íntimos onde a noite dormia
o seu extenso sono de ópio derrotado.
Estes são os signos da monstruosa
maré que a garrar nos levou
de ilha a porto sem armas nem bandeira
enquanto nos areais cresciam as cidades, as fráguas de medalhas,
o coito e a desídia, e eram tantos
os homens e tantas as promessas
que obscureceu o sol. E nós vagávamos
longe de qualquer costa, sem quadrante,
sem lembrarmos nem sequer para que nos alistáramos,
perdida já a memória do antigo itinerário,
abraçados ao amor sobrevivente, ébrios de breu, reunidos
em torno de uma última garrafa
enquanto os sargaços nos comiam e aves que vêem de noite
esvoaçavam incompreensíveis cifras sobre o mastro
e as ondas tomavam forma de braço de animal
e a madeira rangia por deixar-se morrer
como todo o ser canso e obediente,
e o tambor do mar golpeava as costelas do navio
e o tambor dos cantos das nações chamava ao júbilo que nós,
tristes corsários da palavra, jamais compreenderemos.
Este lugar não existe. Dentro aboiam cadáveres
de textos que nunca deveriam ter nascido,
de imagens que água lenta esborralhou
e fica apenas um rasto mordido que em Setembro
arriba às beiras inauditas das aldeias
unido ao sargaço elementar, eterno,
à nutrição da terra. Naufragámos.
Acima de nós um muro de água preta
pesa como um astro. Por fim, no fundo
oceânico, resolve-se o sentido
das cousas que críamos saber. Tudo torna ao começo.
Tudo era singelo. Tudo nos foi abrindo
como ressecos envoltórios. Tudo era tão fácil:
as águas, as areias, os animais marinhos,
o silêncio, a candura, a longa calma,
o preciso lugar onde nos mapas afundou o barco,
tragado num instante e porém tão enorme.
Este lugar é o único ponto do universo
que não existe. Não procurem, malditos,
romper esta membrana com artes, pois é um espelho
que devora.